«(...) E depois mandamo-nos completamente nus, sem nenhuma história, sem
nenhuma palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de
novo então vens-me e chegas-me e invades-me e tomas-me e pedes-me e perdes-me e derramas-me sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a
boca para libertar novas histórias e outra vez completo-me assim, sem
urgências, e concentro-me inteiro nas coisas que me contas, e assim
calado, e assim submisso, mastigo-te dentro de mim enquanto me apunhalas
com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será
cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me
queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e
me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo
faminto o que teu corpo rejeita, bebendo o teu mágico veneno porco que me
ilumina e me anoitece a cada dia, e passo a passo afundo-me nesse charco
que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e
de mim, afastamos-nos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de
cada um sei que tecemos lentos a nossa próxima mentira, tão bem urdida que,
na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando
os olhos, corriqueiros (...) e lentamente
falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e
lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo
voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir, afunda-me mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias
longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que
acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me
afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba assim, nem
agora, nem aqui.»